Estudo desmonta alegação sobre a BR-319 na Crise do Oxigênio

Estudo publicado no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities conclui que o uso da BR-319 foi a pior escolha possível durante a crise do oxigênio em Manaus. A alternativa fluvial, ignorada pelo governo, teria salvado vidas ao entregar o insumo mais rápido e com menor custo

A polêmica sobre o uso da BR-319 durante a Crise do Oxigênio na Pandemia da Covid-19 voltou ao noticiário durante sessão no Senado Federal na última terça-feira (27/05/2025), com a presença da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. Na ocasião, o senador Omar Aziz (PSD-AM) usou o colapso do oxigênio ocorrido na cidade em janeiro de 2021 para justificar a pavimentação da rodovia BR-319, afirmando que viu “pessoas morrerem na cidade de Manaus por falta de oxigênio, porque a BR-319 não estava asfaltada”. A alegação, no entanto, é falsa.

 

Durante a crise sanitária que colapsou o sistema de saúde de Manaus em janeiro de 2021, o governo federal adotou uma rota emergencial pela BR-319 para transportar oxigênio hospitalar, justificando a escolha como a única alternativa possível diante da ausência de outras vias terrestres. No entanto, dois estudos científicos publicados em periódicos internacionais desmentem essa alegação e demonstram que o transporte fluvial pelo rio Madeira seria mais eficiente, barato e rápido.

 

Segundo dois artigos (disponibilizados abaixo) que analisam tecnicamente a crise, a rodovia não só não era necessária, como o colapso teria sido usado como forma de pressionar a obra. O primeiro, publicado na revista Nature Medicine em julho de 2020, já alertava para a iminência de uma segunda onda de COVID-19 em Manaus e a necessidade urgente de medidas de contenção, como distanciamento social e o uso de rotas fluviais para evitar a sobrecarga dos hospitais da capital amazonense.

 

O segundo estudo, publicado em abril de 2023 no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities, examina a logística adotada pelo governo federal para transportar oxigênio durante o colapso. Segundo os autores, a escolha da BR-319 como rota emergencial foi a pior possível, pois a estrada se encontrava praticamente intransitável durante o período chuvoso da Amazônia. O comboio de caminhões ficou atolado e levou 96 horas para concluir o trajeto entre Porto Velho e Manaus — mais que o triplo do tempo previsto.

 

“As declarações dos senadores Omar Aziz (PSD-AM) e Plínio Valério (PSDB-AM) deturpam os fatos. Alegar que a crise de oxigênio em Manaus ocorreu devido à ausência de pavimentação da BR-319 carece de base técnica e revela uma postura eticamente questionável. O agravamento da emergência sanitária foi, na verdade, resultado de uma decisão logística calculada para favorecer interesses políticos ligados à rodovia, desprezando rotas mais eficientes como o transporte hidroviário”, explica Lucas Ferrante, biólogo, ecólogo e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e autor dos alertas.

 

Ao contrário do que foi alegado publicamente, a rota fluvial pelo rio Madeira não só era navegável como também estava em sua melhor fase de trafegabilidade, conforme dados altimétricos obtidos por satélite. Com empurradores potentes, a viagem poderia ser feita em 30 a 52 horas, com custo estimado entre R$ 7 mil e R$ 195 mil, de acordo com empresas do setor. Já o transporte pela BR-319 custou R$ 2,76 milhões, sendo que apenas o oxigênio em si custava cerca de R$ 1,04 milhão. Ou seja, mais de R$ 1,7 milhão foram gastos apenas com o transporte rodoviário, segundo resposta oficial obtida pelos pesquisadores via Lei de Acesso à Informação.

 

“A BR-319 corta uma das áreas de maior biodiversidade do planeta, estimulando o desmatamento, a grilagem e a ocupação ilegal de terras indígenas — ameaças com consequências para o clima e potenciais riscos à saúde pública global, devido à exposição a patógenos ainda desconhecidos como apontei na Nature e no The Lancet. Além disso, em um estudo publicado no Land Use Policy, demonstramos que apenas a manutenção já transformou a região em um hotspots de grilagem e desmatamento”, alerta Ferrante.

 

A crise teria sido instrumentalizada politicamente para impulsionar o projeto da rodovia, inclusive servindo de justificativa para avançar com audiências públicas em meio à pandemia, sem participação efetiva de povos indígenas, conforme denúncia dos autores do estudo.

 

Em reportagem publicada em 9 de junho de 2021, o Vocativo revelou uma cronologia detalhada da tragédia, mostrando que havia alertas claros desde meados de 2020. Em setembro daquele ano, uma nota técnica assinada pelo Dr. Lucas Ferrante e entregue ao Ministério Público do Amazonas já previa o colapso, caso medidas sanitárias não fossem mantidas. Em audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado, em 24 de setembro, a mesma equipe alertou sobre a necessidade de manter escolas fechadas e de reforçar a rede de saúde.

 

Outro fator ignorado pelas autoridades foi o alerta da própria fornecedora de oxigênio da rede pública. Reportagem do Vocativo de 21 de maio de 2021 mostra que a empresa White Martins notificou o governo do Amazonas duas vezes, em dezembro de 2020, sobre o aumento na demanda por oxigênio e a iminência de escassez. Ainda assim, medidas de contenção ou reforço logístico não foram adotadas.

 

Segundo os estudos, a escolha pela BR-319 resultou em centenas de mortes evitáveis, agravando desigualdades raciais e socioeconômicas na região. Famílias de maior renda conseguiram comprar os poucos cilindros remanescentes, enquanto a maioria da população ficou sem acesso ao insumo. Os autores alertam ainda que a manutenção da rodovia aumenta a propagação de doenças como a malária e potencializa o risco de novas pandemias, devido à intensificação do desmatamento e dos contatos com patógenos silvestres.

 

“Se pavimentada, este desmatamento aumentaria mais de 1200% e perderíamos a Amazônia central para o crime organizado. Defender a BR-319 é também defender o avanço do crime organizado no Amazonas. Culpar a ministra Marina Silva por uma crise provocada deliberadamente por interesses políticos é uma acusação injusta e enganosa. A Amazônia demanda decisões pautadas pela ciência e pela responsabilidade, e não por distorções voltadas à manipulação da opinião pública”, avalia o pesquisador.

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